sábado, 31 de janeiro de 2015

Esperar pelo extraordinário

"There is one simple, direct way to deal with all types, and that is truthfully and honestly. We spend our lives trying to avoid the injuries and humiliations which our neighbors may inflict upon us. A waste of time. If we abandoned fear and prejudice, we could meet the murderer as easily as the saint."

Henry Miller, "A Devil in Paradise"

Alguns meses depois de eu me mudar para Houston, fui a um alfarrabista perto do trabalho, que é considerado uma arca de tesouros. Eu adoro livros e adoro livros usados, mesmo sendo alérgica ao bolor, o que por vezes me causa espirros dentro de alfarrabistas e bibliotecas. Mas quando se ama uma coisa, suporta-se tudo, mesmo os espirros. O interior estava cheio de estantes, caixas, e mesas com livros. Havia alguma ordem, mas notava-se que era um local em progresso, onde muitos livros ainda não tinham sido arrumados na ordem natural das coisas. Foi lá que encontrei uma edição de 1956 de um livro de Franz Kafka, "The Trial". O livro não estava no sítio correcto; alguém o tinha deixado numa prateleira que ainda nem tinha sido catalogada. Não tinha preço marcado e a base da espinha do livro estava danificada e tinham posto fita-cola por cima para consertar o que não tinha conserto. De resto, o livro estava bem preservado e as páginas estavam bem seguras, dando a ideia que ninguém tinha lido este livro. Deixei-o ficar para trás, enquanto visitava o resto da livraria. Encontrei um catálogo do Metropolitan Museum of Art de Nova Iorque sobre a exposição de Toulouse-Lautrec, que decorreu de 2 de Julho a 29 de Setembro de 1996, que me interessou e decidi comprar. Depois fui à secção de literatura e encontrei uma cópia antiga de "Tropic of Capricorn" de Henry Miller, que também seleccionei. Regressei ao sítio onde tinha encontrado o livro de Kafka e levei-o comigo para perguntar o preço.

Quando cheguei à caixa, tive de esperar que outro cliente fosse atendido, até chegar a minha vez. Perguntei ao alfarrabista quanto era o livro de Kafka e ele, ao vê-lo, sorriu, e hesitou. Finalmente, disse que aquele livro era muito bom e era pena que a espinha estivesse danificada. Enquanto falava, colava mais fita-cola na espinha do livro, como se estivesse a tentar tratar de uma ferida. Via-se que o magoava ver aquele livro estragado. Após eu mencionar que o livro não estava no sítio correcto, disse que só uma pessoa que se interessasse verdadeiramente por livros o teria encontrado e teria mostrado interesse nele, dado estar em mau estado. Agradeceu-me por eu ter passado tanto tempo a ver os livros e convidou-me a voltar, pois reparou que eu tinha verdadeiro apreço. Depois mencionou que os livros que eu tinha seleccionado eram muito bons e pesados, não eram para qualquer pessoa, e disse que não se surpreenderia se um dia eu escrevesse um livro. Eu respondi-lhe com humildade, pois seria muito presunçoso da minha parte dizer que um dia eu seria escritora. Disse-lhe que apenas estava a tentar ler livros de melhor qualidade e que não tinha quaisquer outras pretensões.

Há livros para os quais nós temos de crescer até os podermos consumir e, por vezes, a falta de interesse por, ou a má impressão que temos de, um livro não está no livro em si, mas está em nós. Na primavera de 2004, morei oficialmente em Oklahoma City. Apenas lá ia aos fins-de-semana, pois durante a semana estava em Stillwater, a trabalhar na minha dissertação. Num dos fins-de-semana que lá fui, mostraram o documentário "Stone Reader" na biblioteca. No início do documentário, Mark Moskowitz, um leitor ávido, fala de como tentou ler "The Stones of Summer" de Dow Mossman quando era novo e não conseguiu. Mas, alguns anos mais tarde, voltou a tentar lê-lo e achou-o extraordinário. Tão extraordinário, que quis ler outras coisas de Mossman e, não as encontrando, iniciou uma busca do homem e disso fez um documentário. É mais ou menos assim que eu me vejo: tenho de me dar tempo para crescer até poder apreciar certas coisas com outra sensibilidade, na esperança de elas se tornarem extraordinárias a meus olhos.

Depois de conversarmos longamente, o alfarrabista ofereceu-me o livro de Kafka. A maneira como o livro tinha sido deixado foi como se tivesse sido um teste e eu tivesse passado o teste: ao demonstrar, pelos meus actos, que eu apreciava livros, eu era digna de o receber.

O meu livro preferido é, sem dúvida, "A Devil in Paradise" de Henry Miller, onde ele contrasta a maneira de encarar a vida dos europeus com a dos americanos. Acho que devia ser um livro de leitura obrigatória porque faz-nos mesmo avaliar a nossa atitude perante os desafios que a vida nos oferece. É uma exploração da ideia de copo meio-cheio/copo meio-vazio, que é uma metáfora característica da maneira de ser americana. Na sua essência, este livro é muito simpático para com os americanos, apesar de Miller saber, na pele, que as coisas não eram tão facilmente destrinçáveis entre bons e maus, e isso é transparente em outras das suas obras e na sua própria vida. Os Trópicos (Trópico de Câncer e Trópico de Capricórnio) de Henry Miller são as suas obras primas. O primeiro foi publicado, em França, em 1934, e foi censurado em vários países, inclusive durante três décadas nos EUA, por ser obsceno. Trópico de Capricórnio foi publicado originalmente também em França, mas em 1939, e foi banido nos EUA até 1961, pela mesma razão. Hoje em dia, ambos são considerados clássicos da literatura.

Ontem, estava a ler um artigo sobre a Whole Foods na Bloomberg e, lá pelo meio, os co-CEOs da Whole Foods falam da sua sociedade como sendo um "casamento sem sexo", uma piada sexual. Imediatamente pensei se alguém iria levar a mal ou iria penalizar a credibilidade dos dois homens. No meu último post, aludi à forma masoquista como algumas pessoas vêem Portugal, quando insistem em denotar Portugal como sendo o pior quando não o é. É praticamente impossível não pensar em sexo quando se pensa em masoquismo e no final do post eu referi-o, tentando fazê-lo de forma engraçada, até porque nós, aqui n'"A Destreza das Dúvidas" somos holísticos e isso inclui sermos especialistas em sexo, obviamente.

Depois desse post, recebi um email de um amigo meu, que me dizia "Mais um post com piadolas sexuais e ficas com a tua credibilidade pessoal abaixo de zero." Ou seja, como eu sou mulher, se quero ser credível, não me é permitido fazer piadas sexuais ou sequer mencionar sexo. Veja-se os comentários que foram feitos à crónica da Sílvia Baptista na "Maria Capaz", de título "Fodamos!" para ficarmos com a ideia de que mulheres respeitáveis não abordam este tópico. Aliás, segundo o meu amigo, é um "desperdício" do meu talento perder a minha credibilidade a falar de sexo, mesmo se o fizer de forma lúdica. O desperdício para mim está em tanta mulher antes de mim ter arriscado a vida, e muitas tê-la perdido, para que um dia, mulheres como eu, pudéssemos falar dos mesmos tópicos que os homens sem por isso sofrer consequências. É que antes de sermos Charlies, já éramos Malalas e Simones e Natálias, etc.

É interessante verificar que um homem que mal me conhece olha para um livro com conteúdo sexual que eu quero comprar e não me define como depravada; mas um amigo meu, que me conhece bem, olha para uma referência a esse mesmo livro como sendo uma mancha na minha reputação. É essencialmente o pensar rápido e devagar, que aborda Daniel Kahneman: o que nós vemos depende da nossa bagagem anterior, depende dos processos de pensamento automáticos que adquirimos ao longo da vida.

Simone de Beauvoir dizia que as mulheres só estariam no mesmo patamar que os homens na sociedade quando ganhassem tanto quanto eles. É uma visão um pouco optimista da natureza humana. Hoje em dia, há cada vez mais mulheres a ganhar o mesmo ou mais do que os homens, mas continuamos a discutir o que é um comportamento adequado para as mulheres em público. Ainda há muitos homens que têm uma clara preferência por ter mulheres que são "putas no quarto", passo a expressão, e seres cordiais e assexuais fora da intimidade doméstica. A realidade não é tão simples quanto isso e há cada vez mais mulheres que ou não se casam, ou não têm filhos, porque, simplesmente, não têm confiança nos homens ou não estão para os "aturar". Ler uma crónica bem disposta sobre este tópico, escrita por um homem, o Paulo Farinha.

Quando eu era miúda, a minha mãe costumava dizer-me: "Rita, nunca dependas de um homem!" Na altura, eu pensei que ela estivesse a referir-se ao aspecto monetário. Hoje, noto que ela não dependia monetariamente do meu pai, por isso não era o aspecto monetário que a preocupava, era outra a dependência em questão. O que ela me dizia era que a forma como eu me defino não pode ser uma função da forma como um homem ou os homens me definem. Talvez seja por isso que eu não me defina como mulher primeiramente, defino-me como pessoa. Ser mulher é incidental; ser pessoa é fundamental.

Agora sinto-me como se regressasse ao sétimo ano, durante o qual aprendemos o conjunto dos números negativos--é que, depois deste post, a minha credibilidade ficou abaixo de zero na opinião do meu amigo. Vá lá, agora fiz uma "piadola" matemática.

Cortes de cabelo, PACC e o futuro do país

Estou eu no cabeleireiro 
[como o Luís Aguiar-Conraria me convidou a integrar o Destreza das Dúvidas com o fito de aumentar a quota feminina do mesmo, pareceu-me um bom sítio para inspirar o meu primeiro post]
quando entra uma família italiana - dois jovens, um rapaz e uma rapariga, presumivelmente irmãos, e a sua presumível mãe. Ar de turistas, seja lá isso o que for num tempo em que a máquina fotográfica foi substituída pelo smartphone. O rapaz fez umas perguntas sobre os "sunlights" (com a guedelha preta que tinha havia de ficar lindo!) e acabou por se sentar na cadeira ao lado da minha e aparar o cabelo. E eu dei por mim a recordar as aulas de Economia Internacional: não eram os cortes de cabelo o cliché dos bens não transaccionáveis?! Bom, parece que os clichés já não são o que eram. Principalmente, os que concernem à distinção entre o que se pode ou não exportar. E, claramente, os serviços deixaram de pertencer ao lote das coisas que não atravessam fronteiras. O Luxemburgo ilustra-o bem: tem uma balança comercial confortavelmente excedentária à custa do sector financeiro (se fosse à conta das mercadorias, teriam um deficit). 
Não quer este meu discurso fazer qualquer guerra à nova bandeira da "reindustrialização". Pretende tão somente lembrar que, se por um lado, os serviços também são transaccionáveis - como está bem patente com o turismo -, por outro, a própria indústria tenderá, cada vez mais, a incluir coisas intangíveis, como o design. Não foi preciso o italiano cortar o cabelo (sem que houvesse aparente urgência nisso) ao meu lado para o perceber. O Friedman - o Thomas, não o Milton - já me havia dito que o mundo estava a mudar. A tornar-se plano, segundo ele; a virar-se de pernas para o ar, parece-me às vezes. Uma coisa ou outra, o certo é que a globalização  veio obrigar-nos (o plural não é majestático, refere-se a Portugal e aos demais países desenvolvidos) a basear a nossa economia no conhecimento. 
E aqui eu preocupo-me. Os resultados da PACC divulgados esta semana são assustadores. Ter competência científica não é condição suficiente para se ser um bom professor. Mas é necessária! Creio ser fácil concordarmos nisto. Tal como creio ser fácil concordarmos que escrever sem dar erros devia ser competência mínima de alguém com o 1º ciclo de escolaridade, quer vá ou não ser professor. Mas os problemas não são apenas na escrita, encontram-se também na resolução de problemas e na interpretação e análise de gráficos. As mesmas dificuldades que, sem estranheza, revelam os alunos. Uma economia baseada no conhecimento não se compadece com isto. Uma economia baseada no conhecimento exige sentido crítico, pensamento abstracto, capacidade de relacionar conceitos e, sobretudo, a faculdade de pensar. Os resultados da PACC vieram confirmar as minhas piores suspeitas de que isto falta nas escolas portuguesas. E mesmo um corte de cabelo tem a sua ciência!

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Quando se insiste na resposta errada

Vítor Cunha respondeu-me. E respondeu-me reformulando a pergunta usando uma linguagem mais objectiva e concisa, o que é muito útil. Só que Vítor alterou a pergunta.


O problema é que ele se esqueceu da proposição “de”. A reformulação correcta seria “poderemos afirmar que o número de grupos diferentes de A é [inferior/superior/igual] ao número de grupos diferentes de B.” 

Ah, mas retira-se pelo contexto e pelo espírito da pergunta e outras merdas. Lamento, a pergunta está mesmo mal formulada. É possível constituir muito mais grupos de B do que de A. O resto são tretas de quem não quer reconhecer que a pergunta é, vá lá, sejamos simpáticos, muito infeliz.

PS Vítor Cunha diz ainda que se alguém pensou como eu pensei é porque "já se esqueceu que o grupo A é composto por 6 elementos e o B, consequentemente, por 11 elementos." Obviamente que tal é um disparate. A resposta que eu dei depende crucialmente de o conjunto B ter mais elementos do que o conjunto A.

Quando a resposta certa está errada

Há 11 jogadores efectivos: E1, E2, E3, E4, E5, E6, E7, E8, E9, E10 E E11. Quantos grupos de diferentes jogadores se consegue fazer com esta base? É contá-los. Aí vão alguns: {E1}, {E1, E2}, {E1, E8}, {E2, E4}, {E9, E10}, {E1, E2, E8, E11}, etc. Se fizerem bem as contas (e não incluindo o conjunto vazio), concluirão que o número de grupos diferentes é de 2047

Se fizeram as mesmas contas para os suplentes ― S1, S2, S3, S4, S5 e S6 ― concluirão que o número de grupos de diferentes jogadores é 63.

Ou seja, a resposta a esta pergunta é, ou devia ser:
podemos afirmar que o número de grupos de diferentes de jogadores suplentes é inferior ao número de grupos diferentes de jogadores efectivos.
Quem respondeu isto teve zero. Isto não não é justo. E entradas como esta do Vítor Cunha a tratar quem errou esta pergunta como estúpido são totalmente descabidas. E, já agora, dizem muito mais sobre os seus autores do que sobre os que tiveram o azar de ter de responder a uma pergunta destas.

PS Sabendo que a resposta considerada certa seria que o número de grupos é igual, consegue-se inferir o que o examinador queria perguntar. O que ele queria dizer é que ao se pegar em 17 jogares e se escolher os 11 que jogam, automaticamente ficam escolhidos os 6 que não jogam. E para cada 11 diferente haverá o complementar correspondente no banco de suplentes. Sabendo a resposta, percebe-se o que queriam perguntar. Queriam mas não conseguiram, perguntaram mal.

PPS Vítor Cunha respondeu-me e eu respondi-lhe de volta.

A mensagem

Confesso que estou bastante decepcionada com os nossos governantes no que diz respeito ao resultado das eleições na Grécia. Acho que ao comentarem não dizem nada de substancial; pelo contrário, acabam por gerar polémica e intrigas que fazem as delícias da nossa comunicação social. Se eu mandasse nas relações públicas do nosso governo, teria preparado um comunicado oficial que diria o seguinte:
"O povo português congratula o novo governo da Grécia e deseja que a Grécia saia da sua crise o mais depressa possível. Nós somos solidários com o povo grego e faremos tudo ao nosso alcance para ajudar a Grécia. No entanto, a nossa preocupação principal é a defesa dos interesses de Portugal e assegurar que qualquer solução encontrada minimize os sacrifícios exigidos ao povo português."

The End

Deve ser esta a mensagem de Portugal: desejamos o melhor, mas preparamo-nos para o pior. Tudo o resto é desnecessário pois, sendo a Grécia um país soberano, tal como Portugal, os seus cidadãos têm o direito de votar em quem muito bem entenderem e a nossa opinião é irrelevante.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Galinhas do Mato

Tinha 11 anos quando Zeca Afonso editou as “Galinhas do Mato”, com Zeca às portas da morte. Lembro-me de uma conversa do meu pai com um amigo sobre o álbum. Dizia esse amigo que tinha de ouvir muito mais vezes porque ainda não estava a gostar, mas que o Zeca Afonso era tão bom que só podia ser falha do ouvinte. Na altura gravei esta conversa no cérebro sem a perceber. Lembro-me de uns anos mais tarde achar isto uma estupidez. Parecia que Zeca era um Deus e que tudo o que fizesse tinha de ser bom ou que, por sabermos que ia morrer, não podíamos criticar o seu trabalho.

Já mais adulto, sinto-me quase obrigado a concordar. Realmente, José Afonso tem músicas de que não gostava e de que não gosto. Mas, mais tarde, há qualquer coisa que me faz gostar dessas músicas de que antes não gostava. Muitas vezes é a versão de um cantor mais recente, outras vezes são situações que assentam como uma luva numa canção do Zeca.

A vantagem é que, ao contrário desse amigo do meu pai, eu não me esforço por gostar. Vem por si.

Depreciação do Euro demorou, mas é muito bem vinda


Evolução do Cambio Euro-dólar – valores médios mensais.

Artigo publicado no Jornal de Negócios

O Euro está a 1,15 dólares, o valor mais baixo desde 2003, quase 20% abaixo do de há seis meses atrás. Esta descida é positiva, quer por estimular a competitividade e no curto prazo e dar um impulso ao crescimento, quer por contribuir para atenuar os riscos de deflação na zona euro (ZE).
O impacto da depreciação do euro deverá ser mais relevante do que a análise mais simplista baseada no peso das exportações para fora da zona euro pode sugerir.
A análise dos efeitos da depreciação do euro tem de começar pelo efeito que esta tem directamente nos bens exportados para fora da Zona Euro. São cerca de 40% das exportações, e quase 50% do valor acrescentado das mesmas. Neste caso o efeito é directo e pode ser muito relevante para conseguir inverter a tendência de abrandamento das exportações dos últimos três anos.
Mas os efeitos não se esgotam aí. Mesmo nos 60% de exportações que têm como destino a ZE, as exportações portuguesas concorrem com produtos oriundos da China, Vietname, México ou Turquia. Há assim um efeito de melhoria da competitividade que é importante considerar, em particular no caso português que, dentro da ZE, é o país com a estrutura de exportações mais próxima da dos países extracomunitários.
Há ainda o efeito de arrastamento das empresas fornecedoras de grupos que exportam para fora da zona euro. Os exemplos de empresas portuguesas fornecedoras dos grandes grupos automóveis europeus são os mais óbvios. Uma proporção elevada das exportações portugueses são componentes para empresas europeias, que depois são exportados para fora da ZE.
Por último há ainda o efeito de substituição no mercado doméstico e os efeitos nas exportações de serviços. No caso do Turismo, o maior mercado continua a ser o inglês, um país fora da ZE.
Considerando todos estes efeitos podemos dizer que, se a depreciação do euro não é a cura ou a solução de todos os nossos problemas, tem potencial para dar um contributo positivo muito relevante.
Podemos também perguntar porque é que esta depreciação não veio mais cedo, questionando porque é que se permitiu que durante uma década se assistisse a uma tão forte apreciação do euro, que passou de mínimos próximos dos 0,8 dólares, entre 2000 e 2002, para valores máximos próximos dos 1,6, em 2008, situando-se entre os 1,3 e os 1,5 dólares na maioria do período entre 2007 e 2014 – ver gráfico.
A resposta é ao mesmo tempo complexa e bastante simples. É complexa porque os factores que influenciam a evolução cambial num regime livre são complexos, resultando das expectativas e da combinação e articulação da política monetária, evolução dos preços, crescimento relativo, saldos externos, etc.
No entanto, também é relativamente simples. Em grande medida a forte valorização do euro no período entre 2001 e 2008, reflectiu as prioridades e preocupações do BCE nesse período.
Numa altura em que uma parte importante dos países do Euro apresentavam défices externos elevados, que recomendavam uma desvalorização da moeda, prevaleceu a ideia de combater por todos os meios o risco de uma aceleração da inflação que nada indicava que pudesse acontecer.
De facto, até 2010, o discurso oficial do BCE desvalorizou os riscos e problemas criados pela existência e agravamento dos défices das balanças de transacções correntes dentro da Zona Euro, mantendo uma política monetária conservadora consistente com a valorização.
Não se trata de atribuir todas as culpas de tudo o que aconteceu aos países do Sul da Europa às opções de política monetária, que lhes foram particularmente negativas. Outras instituições fizeram outros erros, e estes países fizeram os seus próprios erros.
Mas pode-se perguntar se foi razoável as instituições europeias esperarem que os países do Sul da Europa podiam resolver os seus problemas de competitividade e de desequilíbrio externo, num contexto em que em simultâneo à abertura do mercado europeu à entrada de produtos concorrentes das suas exportações, assistiam a uma duplicação do valor da sua moeda (de 0,8, para 1,6 dólares).
Com uma valorização galopante desta natureza, só empresas que conseguissem ganhos de produtividade de 10% ao ano poderiam manter as suas margens. Não é assim estranho que tenha sido difícil atrair nesses anos mais investimentos para a área dos transaccionáveis. No caso português o mais estranho e surpreendente é que, mesmo com a valorização do euro que aconteceu, se tenha conseguido nesse período aumentar as exportações e reduzir, mesmo que de forma insuficiente, o défice da balança de bens e serviços.
A depreciação do Euro é assim uma boa notícia, que vindo tarde, esperemos se possa manter por um período relevante, dando o seu contributo para facilitar a melhoria da competitividade e do crescimento numa Zona Euro, que para tantos dos seus elementos tem tido uma política monetária muito longe da que seria óptima.



Eu vejo-me grega com os portugueses

Anda tudo excitado com o Syriza, mas eu raramente me excito com políticos sobre os quais eu ainda não sei praticamente nada. Há muita gente que vê os gregos como coitadinhos; pela minha parte, eu acho que foram mal tratados e acho que deviam ter sido ajudados de maneira diferente, mas os gregos não são coitadinhos.

Quando eu trabalhava na Universidade do Arkansas, conheci um estudante de mestrado da Grécia que estava a fazer um estágio lá, juntamente com uma estudante de doutoramento da Itália e uma post-doc de Espanha. Como eu tinha carro e eles não, frequentemente eu os levava pela cidade e era comum irmos jantar fora. Uma noite, o grego e a italiana entraram numa grande discussão. Ela achava que a Itália devia ser um país decente e as pessoas deviam exigir que o Sr. Berlusconi se portasse à altura. O grego achava que tanto a Itália como a Grécia eram corruptos e não tinha conserto. E disse ele que, na Grécia, era completamente normal e aceitável, um funcionário público chegar ao trabalho, pendurar o casaco, sair para fumar cigarros, depois regressava para apanhar o casaco para sair para o almoço, tirava um almoço prolongado e depois lá aparecia, quase a horas de ir para casa. Era normal, o funcionário fazer pouco ou nada e ninguém dizia nada. Um comportamento destes não é normal em Portugal.

Durante a crise financeira e as várias intervenções na Grécia, ouvi muitas vezes na rádio americana relatarem a maneira como o serviço de saúde grego funcionava. Vocês podem ler a descrição das práticas corruptas utilizadas, como exigir que um paciente pague um suborno para ter consulta, dar subornos para ver certos médicos ou para ter consulta mais depressa, etc. Por exemplo, custava €50 de suborno para ir a um hospital e €3.000 para ter uma cirurgia. Os subornos faziam parte da compensação da classe médica. Eu não conheço casos destes em Portugal; já sei que os médicos recebem prendas das farmacêuticas, etc., mas nenhum médico estende a mão como condição para ver o paciente.

E depois há forma como os políticos gregos se comportaram. A Grécia recebeu intervenção formal em Maio de 2010, depois de muitos meses de incerteza--eles já estavam na corda bamba antes do colapso financeiro de 2008,--em que o país podia ter iniciado uma mudança de comportamento. Escolheu não o fazer antes e também não o fez durante algum tempo depois da intervenção. Em vez disso mudou de governo praticamente de seis em seis meses, procurando criar o máximo de instabilidade política pois pensavam que a UE estava a fazer bluff. Não nos esqueçamos que a Grécia não só aldrabou todas as estatísticas para entrar no euro, ou seja, não fez esforço nenhum de ajustamento da economia, como contratou a Goldman-Sachs para os ajudar na fraude. (A UE sabia da situação e, mesmo assim, deixou entrar a Grécia no euro criando uma situação de profundo risco moral. Depois de adoptar o euro, a Grécia devia ter sido acompanhada cuidadosamente pela UE. Obviamente, que o grande problema nessa altura era que o polícia de serviço, a Alemanha, tinha perdido a autoridade moral para dar lições aos outros, pois foi um dos primeiros países a quebrar o acordo de Maastricht--mesmo hoje, a Alemanha está em violação do acordo.)

Só em 2012, é que a Grécia viu que as coisas eram mesmo sérias e iniciou "reformas", como oficialmente reduzir em metade o salário do Presidente da Grécia de $462.504 (recebia €23.122 de salário mais €6.240 de despesas por mês, mas note-se que o Presidente grego da altura teve o bom senso de prescindir do salário voluntariamente); como comparação, o Presidente dos EUA ganhava $400.000 por ano.

Hoje coloquei essa notícia antiga, cujo link incluí acima, no meu grupo de discussão de economia no Facebook. E, de repente, muitos membros dizem que Portugal é exactamente a mesma coisa, é tudo igual à Grécia!!! Em 2011, o vencimento do Presidente da República de Portugal era de €6.523, depois de já ter sido cortado em 2010 e, outra vez, nesse mesmo ano de 2011, e nós tivemos intervenção depois da Grécia. Como é que isto é "exactamente igual" à Grécia?

Nós não somos tão maus quanto a Grécia. Não sei a razão desta predilecção nacional pelo masoquismo. Penso que o masoquismo é bom nos livros das "Cinquenta Sombras de Grey", mas eu prefiro ler os Trópicos de Henry Miller.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Primeira desilusão...

Dá-me ideia que o novo Ministro das Finanças grego dá ares de ser um Vítor Gaspar da contabilidade nacional:
“We are in favor of a frugal lifestyle. What is the necessity of so many Porsche Cayennes in the narrow streets of Athens? Greeks were more creative when they lived frugally, without loans and credit cards,” he [Varoufakis] highlighted.

Fonte: Greek Reporter

Mas, a meu ver, um grego que compre um carro alemão, depois de toda esta tragédia, não é um bom grego. Eu sugiro um Ferrari para ajudar a Itália...

Just a coincidence?


Procuram-se líderes...

"Only when the tide goes out, do you discover who's been swimming naked."
Warren Buffett
Revoltei-me ao ler esta notícia acerca da demissão em bloco dos chefes das urgências do hospital Garcia de Horta. A demissão numa altura de crise, em que a vida de pessoas está em risco, vai contra tudo em que acredito. Acho uma demonstração clara de falta de profissionalismo. É muito fácil estar à frente de organizações em tempos normais, quando as coisas são previsíveis. Quando se entra em situações de crise, é que se vê quem andava a nadar nu, como dizia o Warren Buffett. O que me incomoda ainda mais é que um surto de gripe de gravidade acima do normal não é uma situação extrema. Se tivesse havido uma crise pior, teria sido uma razia.
Sim, reparei que a demissão é pescadinha de rabo na boca: “Não haveria (recuo no pedido de demissão) se as condições difíceis não fossem reversíveis, mas as condições são reversíveis”. Não compreendo esta necessidade de criar estes dramas todos quando a vida das pessoas está em causa. Mas lá está, como falávamos eu e o Zé Carlos, em Portugal é previsível que o sistema encalhe.

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Dúvidas de dívida

No Domingo, estava a ouvir a rádio quando um analista, que comentava acerca da Grécia e do programa de QE do BCE, comparou os bonds portugueses com os bonds alemães. Ele disse que a dívida portuguesa era muito má porque a economia portuguesa era muito fraca e a economia alemã era tão melhor. Não sei se é por eu ser portuguesa, mas eu não acho a economia alemã grande coisa. Aliás, na minha cabeça, a economia alemã é um grande puzzle, pois cresce muito lentamente, tão lentamente que me faz lembrar o Japão. E depois, para um investidor, a dívida portuguesa é óptima: boa rentabilidade e Portugal, apesar de tudo, lá encontra maneira de pagar as contas.

Esta semana decidi ir ver a dívida alemã, mais propriamente a dívida das famílias--quando eu estou aborrecida, consulto estatísticas. Encontrei a página de estatísticas da zona euro, que tem uma ferramenta de gráficos muito gira onde construí o seguinte gráfico:

Em 2013, o rácio da dívida das famílias alemãs era de 83,3%, das irlandesas de 191,8%, das portuguesas de 117,5%, e das francesas de 84,5%. Depois comecei a pensar onde é gasto este dinheiro. A maior parte da dívida das famílias está relacionada com a habitação e o carro. Portugal tem tradicionalmente uma alta taxa de habitação própria, mas na Alemanha arrenda-se mais. Fui ao Eurostat, que indica que, em 2013, 74.2% da população vivia em habitação própria em Portugal; 52,2% na Alemanha; 64,3% na Franca; e 69,6% na Irlanda (isto em 2012, pois os números para a Irlanda não estão disponíveis para 2013). Concluo que, ou as casas alemãs são muito caras, ou os alemães gastam muito dinheiro a comprar carros, ou os alemães financiam muito do seu consumo a crédito, ou uma combinação destes três factores--para um povo com a reputação de "poupadinho", parece-me um comportamento estranho.

Note-se também que, em termos de dívida privada (empresas e famílias), a Irlanda está em muito pior estado do que Portugal, o que é muito surpreendente, pois os salários aumentaram muito mais lá do que em Portugal durante a época de boom e a Irlanda tinha taxas de crescimento invejáveis. O efeito da crise financeira é claramente visível na dívida das empresas irlandesas, mas a dívida das famílias irlandesas estava mais alta do que a portuguesa antes de 2008. Ou seja, para mim, nós temos pior reputação do que merecemos, mas também não somos muito bons a projectar uma imagem de confiança em nós próprios.

Garantias de previsibilidade

Max Weber foi um dos mais profundos e perspicazes pensadores sobre a era moderna e o capitalismo. Há cerca de 100 anos, escreveu:

“O capitalismo industrial (…) tem de poder contar com a regularidade, a segurança e a objectividade do funcionamento do ordenamento jurídico, com o carácter racional, essencialmente previsível, do direito e da administração.”

As intervenções estatais deveriam estar enquadradas legalmente, não pelo perigo de, ao contrário, poderem lesionar princípios de justiça, mas porque se tornariam imprevisíveis, com o que se negaria a racionalidade (leia-se: capacidade de prever as consequências) que convém aos interesses dos capitalistas.

Sem estas garantias de previsibilidade ou calculabilidade, o capitalismo não poderia florescer.

Non sequitur?

A Grécia já começou a mudar.
A esperança chegou finalmente ao povo helénico.

Novo programa de empreendorismo para Portugal...

Que pena eu não acertar assim na lotaria: no outro dia, queixava-me eu de não se atrair emigrantes qualificados para regressarem a Portugal e eis que os meus desejos ir-se-ão realizar. Diz o artigo no Público,
Novidade é a promessa de lançar, também este ano ainda, um programa de "Empreendedorismo para Emigrantes”.

Ou seja, o Governo vai “apoiar a criação de empresas por nacionais não residentes em território nacional”. Não se compromete com metas sobre quantas empresas a criar, ao contrário do que acontece noutras medidas deste plano estratégico. Mas explica: “Dispondo Portugal de uma vasta e muito qualificada diáspora, hoje enriquecida por novos perfis migratórios de jovens que têm procurado outros destinos, estará aí a primeira fonte de migrantes que nos interessa enquanto nação captar.”

Público, 26/1/2015

É verdade, "I see dead people..."

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Poder de dragão...

Menos de uma semana depois de o BCE formalmente anunciar que ia inundar o mercado de euros, basta a vitória do Syriza na Grécia para o euro apreciar. O mercado é irracional no curto prazo e não se pode fazer grandes ilações destes movimentos, mas não deixa de ser curioso. Como bem observou o Luís no outro dia, atravessamos águas nunca antes navegadas. A palavra de ordem é mesmo "incerteza".

Uma declaração histórica

Em 1792, é utilizada pela primeira vez no Parlamento inglês a expressão "opinião pública" (public opinion). O whig Charles James Fox, num ataque ao seu arquirrival William Pitt, declara:

“É verdadeiramente correcto e prudente consultar a opinião pública (…) Se por acaso a opinião pública não coincide com a minha; se, depois de alertar para o risco, não virem as coisas de forma semelhante à minha, ou considerarem outro projecto preferível ao meu, consideraria meu dever ante o rei, ante a minha pátria e ante a minha honra, retirar-me para que possam seguir o plano que considerarem melhor mediante um instrumento adequado, ou seja, mediante um homem que coincida com eles (…) mas uma coisa está muito clara: que eu deveria proporcionar ao público os meios adequados para se formar uma opinião.”

Na declaração de Fox, a última frase é a mais importante - the means of forming an opinion. Fox referia-se, claro, à educação e à informação necessárias para se formar uma opinião fundada, opinião que nasceria de um debate público, no qual vingariam os argumentos mais racionais e persuasivos.

Nesta época, o “público” reduzia-se aos proprietários e às pessoas instruídas, que não iriam além de umas centenas de milhares num país que já teria mais de 20 milhões. De qualquer maneira, o absolutismo parlamentar vê-se obrigado paulatinamente a ceder a sua soberania. Os deputados têm como interlocutor oficial o “público” e estavam lançadas as bases para um government by public opinion

domingo, 25 de janeiro de 2015

Mais uma contratação para 2015

Como expliquei há uns dias, a Vera Gouveia de Barros, por motivos profissionais, teve de sair sem sequer se ter chegado a estrear no nosso blogue. Decidido em aumentar a quota feminina d’A Destreza das Dúvidas, encontrei a pessoa certa. É portuguesa, doutorada em economia por uma universidade do centro da Europa. Apesar de nessa universidade darem bastante importância às correntes heterodoxas, acabou por trabalhar com um orientador neoclássico em áreas ligadas à regulação dos preços nos sectores energéticos. Felizmente que assim foi, ou muito dificilmente teria conseguido o primeiro emprego que conseguiu: um estágio no Banco Europeu de Investimento.

Caros leitores, é com gosto que vos digo que brevemente teremos o gosto de ler as opiniões de Sara Pitola, a nossa nova contratação.

O custo da ignorância

Ontem, a minha chefe foi a uma gala com o marido e, como nenhuma das suas babysitters usuais estavam disponíveis, pediu-me para tomar conta da sua filhota de 11 anos. Depois de ela regressar da gala tivemos oportunidade de conversar. Eu tinha levado a minha máquina de costura para ensinar a filha a costurar e tinha-a transportado num saco Vera Bradley. A filha dela disse-lhe que gostaria de ter um saco Vera Bradley e eu comentei que a margem de lucro da Vera Bradley era fenomenal (no meu emprego anterior, a Vera Bradley era um dos nossos clientes e eu ouvia os comentários dos nossos analistas).

A Vera Bradley começou por fabricar os seus sacos de tecido de algodão nos EUA; mas, à medida que introduziu itens mais complexos, como porta-moedas, passou a produção das coisas que eram mais intensivas em trabalho para a China. Hoje em dia, tudo é fabricado na China, mesmo os sacos mais simples. A minha chefe retorquiu que isso foi o que aconteceu com a McKenzie Childs, que agora fabrica tudo na China. Esta marca de autor, no início, fabricava todos os produtos em Amherst, Nova Iorque. Depois da marca ir à falência, o fundo de investimento que a comprou manteve o design nos EUA mas mudou a produção para a China, o que desagradou a muitos dos clientes mais antigos, pois massificou-se a produção e diluiu-se o prestígio da marca. Muitas das clientes antigas, as que eram mais abastadas, deixaram de comprar.

Esta semana que passou, visitei a loja da Crate and Barrel. Costumo receber o catálogo deles, e já o recebo há vários anos, apesar de Houston, para onde me mudei há pouco mais de um ano, ser a primeira cidade onde moro que tem uma loja Crate and Barrel. Esta marca especializa-se em artigos para classe média/média alta. O design é limpo, com algumas tendências minimalistas, e há uma clara aposta na qualidade. Gosto muito de visitar esta loja e a da Pottery Barn porque em ambas encontram-se lá muitos artigos feitos em Portugal e o design é extremamente agradável. Quando regressei a casa, e fiz uma busca de artigos portugueses, fiquei deveras surpreendida com o número e variedade do que se encontra na Crate and Barrel: 545 itens! Não pensei serem tantos, mas ainda bem que me enganei.

Quando falo com portugueses, ouço frequentemente queixas de que a nossa competição é a China e estamos condenados a baixos salários por causa da China. Estas pessoas não podiam estar mais erradas. Estamos condenados a baixos salários porque não conhecemos o mundo, nem o que os clientes estrangeiros querem. Há mercado para produtos portugueses se nós soubermos posicionar-nos no mercado. Escolhendo nós uma atitude de ignorância e baixa auto-estima não nos leva a lado nenhum, só nos atrasa. E, se pensam que eu não tenho razão, enganem-se.

Na Fresh Market, uma mercearia gourmet, onde se faz compras ao som de música clássica, a lata de atum mais cara tem atum português e diz na descrição do produto "During his travels to Portugal, Cole spent some time in the south and discovered some fishermen catching tuna off the Atlantic coast.", mas a marca não é portuguesa--apesar de usar Portugal como forma de se distinguir da competição. O preço do atum é $14,99 por lata antes do imposto de venda. Afinal, o Michael Porter tinha razão ou não? Não é preciso um novo relatório Porter, o anterior ainda serve. É preciso é que os portugueses mudem de atitude. A nossa ignorância sai-nos muito cara, mas dá muito dinheiro aos estrangeiros.

Personagens planas

Lembro-me de no liceu, nas aulas de português, aprender a distinção entre personagens planas e personagens redondas. As personagens planas eram personagens sem densidade psicológica, que não evoluíam ao longo da história. Era fácil prever as suas reacções perante quaisquer situações.

Portugal está cheio de personagens planas a assinar colunas de opinião nos jornais. Basta conhecer o tema do artigo de opinião para se saber antecipadamente a opinião do articulista. De certa forma, reconheço, é normal que assim seja, os assuntos não são assim tão variados e, conhecendo o quadro mental por onde o articulista se move, não é de espantar que se saiba o que defende. Com certeza que quem me lê regularmente já consegue adivinhar o que penso sobre diversos assuntos.

sábado, 24 de janeiro de 2015

Medidas desesperadas com resultados incertos

Hoje, ao ver o Governo Sombra, fui surpreendido com o João Miguel Tavares (JMT) a dizer que todos os economistas consideravam excelente o anúncio do Mario Draghi de que o Banco Central Europeu (BCE) ia intervir em força na compra de activos financeiros, incluindo dívida pública dos estados europeus. Acrescentou ainda que o BCE ia fazer o que o Banco de Portugal fazia quando tínhamos moeda própria.

Não me parece que esta política seja consensual entre economistas. Estas políticas monetárias não convencionais são aplicadas quando nada mais funciona. Ou seja, são medidas desesperadas. E não são convencionais precisamente porque os riscos a elas associados são grandes. Ou seja, o que Mario Draghi anunciou foram medidas desesperadas de resultados incertos.

Numa situação de crise como a actual, os Bancos Centrais gostam de baixar taxas de juro por acreditarem que a descida nas taxas de juro vai estimular o investimento. O problema actual é que as taxas de juro que o BCE controla já estão praticamente no zero pelo que não dá para baixar mais. As políticas monetárias tornaram-se ineficazes. Com as políticas monetárias não convencionais, o objectivo é o de conseguir baixar outras taxas de juro não controladas directamente pelo banco central, permitindo assim aos outros agentes beneficiar das taxas baixas. Há alguns motivos para desconfiar da eficácia de tais medidas. Em primeiro lugar, o BCE é responsável por diversos países e terá de actuar de acordo com a quota de cada um no BCE. Isso obriga a que grande parte da pipa de massa anunciada vá parar a países que nada têm a beneficiar com estas medidas. Basta lembrar que há muitos países com taxas de juro da sua dívida pública em mínimos históricos.

Ao contrário do que JMT sugeriu, ao comparar o que o BCE vai fazer com o que Portugal fazia nos anos 80, o BCE não vai financiar directamente os Estados. O BCE vai comprar activos financeiros no mercado. Ou seja, vai valorizá-los. Quem beneficia directamente com isso são os investidores que têm esses activos financeiros (ou substitutos próximos). Esses ganharão. Não é de todo óbvio qual o mecanismo de transmissão que garantirá que os benefícios de alguns serão estendidos ao resto da economia. É necessário esperar que os bancos façam chegar esse dinheiro às empresas. De qualquer forma, imagino que se Draghi anunciou estas medidas agora é porque está confiante de que o sistema financeiro europeu já está mais funcional. De uma coisa podem, no entanto, ter a certeza. Banqueiros/especuladores/investidores financeiros esfregam as mãos de contentamento.

Outro aspecto importante tem a ver com a taxa de juro real (taxa de juro nominal subtraída das expectativas de inflação). Com o perigo de deflação que temos pela frente, mesmo com taxas de juro próximas do zero, a taxa de juro real pode ser demasiado elevada, não estimulando assim o investimento. Dado que não houve alteração do mandato do BCE quanto à taxa de inflação, não há motivo para crer que as expectativas de inflação subam substancialmente. Ou seja, há motivos para acreditar que a política monetária continuará razoavelmente ineficaz.

A longo prazo, é importante ter consciência de que estas políticas promovem comportamentos arriscados. Ao baixar todas as taxas de juro da economia, investidores que pretendam taxas de rendibilidade mais elevadas irão alterar a sua carteira apostando mais em activos arriscados. Uma composição de carteiras com maior risco só não é problema se tudo correr bem.

Para terminar, duas notas positivas e um aviso.

Primeiro, a única experiência de longo prazo que temos com políticas não convencionais é a do Japão. O que se tem visto no Japão ao longo das últimas duas décadas é que estas políticas não têm servido para tirar o país da estagnação permanente em que parece viver, mas também não foram catastróficas.

Segundo, é verdade que parece que nos EUA esta política deu os seus frutos. É, no entanto, importante lembrar que a política orçamental nos EUA foi bem mais razoável do que na Europa, que eles não têm as limitações que o BCE tem e que o sistema financeiro parece mais fluido.

Um aviso final. Na verdade, como neste momento é óbvio, sabemos muito pouco de (macro)economia. Isso deve alertar-nos contra políticas demasiado arrojadas. E se estas, para já, parecem não ser o desastre anunciado por muitos e, pelo contrário, têm alguns benefícios a verdade é que ainda não é óbvio como vai o FED fazer para desinflar o seu balanço.

Estratégia falhada

Amanhã, dia 25 de Janeiro, é o último dia do North American International Auto Show deste ano, que se realiza em Detroit. Desta exposição, a mensagem que devemos levar para casa é que há muito boa gente a tentar produzir um carro eléctrico e este exercício aproxima-se cada vez mais de ser uma realidade. Não sei se repararam, mas a Ikea já tem estações de recarga de veículos eléctricos no Reino Unido e nos EUA. Acho que podemos afirmar que estamos a caminho de transferir parte da nossa procura de energia de produtos derivados do petróleo para a electricidade. Para Portugal, isto pode ser extremamente positivo, pois dados os investimentos massivos em tecnologias de energia renovável, trocarmos carros a gasolina e gasóleos por carros eléctricos, por exemplo, irá reduzir as nossas importações de petróleo. Para o estado português, é bom que se prepare para esta realidade, pois a receita de impostos irá dar um mergulho.

Em Agosto de 2014, o Wall Street Jornal dizia que o preço do petróleo não mais iria ser menos de $100. Hoje sabemos que o WSJ escolheu o estudo errado para noticiar. Na primeira metade de Janeiro deste ano, o Principe Alwaleed bin Talal da Arábia Saudita disse que nunca mais o barril de petróleo iria valer $100. Com a morte do Rei Abdullah da Arábia Saudita, muita gente questiona se a estratégia de preço baixo do petróleo irá ser mantida. A resposta é clara agora: a OPEC está prestes a perder uma grande parte do seu mercado. Foi uma estratégia errada ter deixado os preços do petróleo tão altos durante a Grande Recessão, pois isto atrasou a retoma, mentalizou os consumidores para conservar energia, e aumentou a competitividade do investimento em produtos que usam energias alternativas. E claro, também foi uma prenda para quem queria investir em fontes alternativas de energia.

A Arábia Saudita é um dos países com menor custo de extracção de petróleo, logo pode suportar preços muito baixos e ainda assim fazer lucro. De acordo com a Energy Information Administration, o custo médio de extracção de um barril de petróleo no Médio Oriente é de menos de $20, nos EUA é de sensivelmente $35, na América do Sul um pouco mais de $25, e em África cerca de $45 (preços medidos em dólares americanos de 2009). A China tem recentemente andado muito interessada em África, logo não podemos descartar a hipótese de a China tentar investir em África para produzir petróleo a custos mais económicos. (Não é agora surpreendente que a China se tenha interessado em investir na EDP.) O preço de petróleo desceu abaixo de $50/barril, mas ainda está acima de $46--a estes preços já há muitos produtores aflitos, logo estamos a chegar a um ponto de maior incerteza, em termos de potencial de baixa de preços. Mas devemos estar cientes de que os Saudis finalmente aprenderam a lição de que a única maneira de prolongarem o negócio a longo prazo é sacrificarem o curto prazo.

Sinergia de pensamentos

Algumas horas depois de eu ler o post do José Carlos Alexandre acerca da cena do Monty Python, finalmente terminei de processar o episódio das inundações de Lisboa, durante o qual António Costa proferiu a solução "Não existe solução!". Como estamos a preparar-nos para eleições e António Costa tem uma equipa a trabalhar em soluções, vou dizer o que me incomoda com a solução anterior:
  1. A falta de empatia: quando há uma catástrofe que afecta a vida das pessoas, a primeira e principal coisa que eu quero ouvir de quem ocupa lugares de responsabilidade é empatia. Ele podia ter dito que a prioridade da administração dele era minimizar o sofrimento humano, apoiar as pessoas afectadas, e tentar que regressassem à rotina o mais depressa possível. Essa, para mim, deveria ter sido a mensagem principal. Talvez esta minha preferência se deva ao facto de, desde 1997, eu morar em sítios onde há tornados e todos os anos há catástrofes. Agora até tenho o privilégio de morar numa zona de furacões.
  2. Tem sempre de haver solução: uma pessoa que ocupa um lugar de responsabilidade não pode dizer que uma coisa não tem solução porque, senão, está a admitir que é irrelevante ou dispensável. O que é que diferencia duas pessoas que não oferecem uma solução? Absolutamente nada. Se ele não tem uma solução, então é indiferente se para lá for outro que também não tenha solução.
  3. O que os nossos antepassados fizeram por nós: já alguma vez saíram à rua numa cidade e se deslumbraram com todo o génio humano? Já pensaram "Uau, nós construímos isto tudo. Sim, nós, humanos, inventámos todas as coisas necessárias para fazer tudo isto!" A mim acontece-me frequentemente. E hoje pensei: "Bolas, se sem computadores, nem gruas, nem calculadoras, os Romanos conseguiram construir aquedutos que ainda se preservam hoje; se os portugueses conseguiram construir o Aqueduto das Águas Livres que sobreviveu ao terramoto de Lisboa em 1755, como é que não há maneira de encontrar uma solução melhor para Lisboa? Parece-me um problema trivial por comparação."
Espero ansiosamente por soluções melhores do que a anterior.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Um vício perigoso

Ao contrário do que pensava Nietzsche, a “vontade de poder” não é um exclusivo dos mais fortes. Como a cobiça e a inveja, é um dos vícios dos fracos. Talvez o seu vício mais perigoso.

Se a moda pega...

Hoje estava a ouvir o programa da Diane Riehm, quando uma das senhoras no painel disse qualquer coisa como "Congress has less approval ratings than most sexually transmitted diseases!" Não consegui parar de rir. Cheguei ao gabinete e fiz uma busca no Google para ver de onde vinha aquilo. Encontrei a fonte: recentemente, uma empresa que estuda a opinião pública, decidiu fazer um inquérito a comparar o Congresso americano com coisas desagradáveis. O Congresso não se saiu muito bem:
“We all know Congress is unpopular,” said Dean Debnam, President of Public Policy Polling. “But the fact that voters like it even less than cockroaches, lice, and Genghis Khan really shows how far its esteem has fallen with the American public over the last few weeks.”
O que é que aconteceria se fizessem um estudo deste tipo em Portugal?

Direitos inalienáveis

Quem já foi à Alemanha com certeza que se terá deparado com avisos como o que mostro nesta fotografia.

Sinal fotografado à entrada de uma casa de banho pública na Alemanha
Depois de desistirem da peregrina ideia de que o homem tem de baixar o aro da sanita sempre que sai da casa de banho, os alemães iniciaram uma campanha para que o homem faça xixi sentado. Isto não é sequer admissível e, mais grave, vai contra a lei natural das coisas, ou seja, vai contra a vontade de Deus.

Sobre este assunto, vem contado na Bíblia uma história muito curiosa. Estava Deus a passear pelo paraíso, distribuindo graças, quando encontrou Adão e Eva e lhes disse:
Neste saco, tenho apenas mais duas bênçãos, uma para cada um de vós. A primeira é a possibilidade de urinar de pé.
Adão, rápido a reagir, correu, agarrou essa graça e foi muito feliz, aos saltinhos, fazer xixi em todas as árvores das proximidades, largando gritinhos histéricos de alegria. Finalmente, Deus virou-se para Eva e disse-lhe:
Bem, parece que fica para ti o último talento que tenho para distribuir. Orgasmos múltiplos.
Serve esta história verídica para dizer que os homens pagaram um preço muito alto pelo direito a urinar de pé. Não é legítimo questionar esse direito, pelo menos enquanto não nos derem a multiplicidade orgásmica. Sendo matéria de fé, é uma questão de liberdade individual.

Foi assim com um sabor vindicativo que li esta notícia vinda da Germânia:
Um tribunal alemão decidiu nesta quinta-feira que urinar de pé é um direito que assiste aos homens. Isto depois de o proprietário de um prédio ter retido parte de um depósito de três mil euros a um inquilino, alegando que este lhe tinha estragado parte do chão de mármore da casa de banho com urina, porque urinava de pé e não sentado.
Muito bem. É um tribunal alemão na vanguarda dos direitos do homem.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

O que é que a Europa fez por nós?

Nos meus momentos de eurocepticismo, costumo lembrar-me de uma célebre cena dos Monty Python em “A vida de Brian”, que me serve de antídoto contra esses pensamentos.
Numa reunião de “terroristas judeus”, cujo objectivo é acabar com o “imperialismo romano”, alguém diz:
- Já nos sangraram, os bastardos. Já tomaram tudo o que tínhamos. E não só de nós. Dos nossos pais e dos pais dos nossos pais.
E, em tom inflamado, pergunta:
- What have the romans ever done for us?.
Alguém na plateia, acanhadamente, responde:
- O aqueduto.
E, para desespero do líder, os outros começam então a desfiar uma lista que parece não ter fim: saneamento, estradas, irrigação, medicina, educação, vinho, casas de banho públicas, segurança nas ruas, ordem, paz…
O que é que a Europa fez por nós? Bem…

Romanos

Na primeira temporada dos Sopranos, um judeu tem o azar de cair nas mãos do gangue de Tony Soprano. É torturado, mas não cede. Um dos capos, espantado com a resistência do homem, chama de emergência o big boss. Quando chega, Tony Soprano ameaça de imediato com métodos ainda mais radicais. O judeu, em tom de desafio, diz-lhe então (não me lembro das palavras exactas):
- Os romanos perseguiram, humilharam, torturaram e mataram muitos judeus, mas nós cá continuamos, e onde é que estão os romanos agora?
- Os romanos somos nós, idiota – responde-lhe o Tony.

O PSD e os homossexuais

Nos anos 60, o Partido Comunista expulsa um seu dirigente histórico, Júlio Fogaça, usando a sua homossexualidade contra ele*. Nos anos 60, Álvaro Cunhal foi eleito secretário-geral do PCP. Já nos anos 90, possivelmente em 1992, Cunhal declara, numa célebre entrevista a Carlos Cruz, que a "homossexualidade é uma coisa muito triste".

Em 2015, Rita Rato, jovem deputada do PCP, anuncia na Assembleia da República que o PCP vai, pela primeira vez, votar a favor da adopção por parte de casais homossexuais. Interessante ver que o PCP, ao contrário do PSD, não ficou parado no tempo. Interessante ver que neste assunto o PSD está mais próximo da Rússia de Putin, ex-KGB, e o PCP está mais próximo da Holanda (primeiro país, salvo erro, a reconhecer este direito às crianças).

E, todos já perceberam, dentro de poucos anos, a adopção por casais do mesmo sexo vai ser legal. Os ventos da História sopram do lado do PCP e contra o PSD.

* É muito provável que venha algum membro do PCP dizer que esta informação está errada ou argumentando que Júlio Fogaça não foi expulso ou dizendo que a sua homossexualidade já era conhecida dos tempos do Tarrafal e que não foi essa a razão da sua saída.

Pergunta

Não vos parece estranho que o Ministério das Finanças tenha tecnologia para guardar todas as nossas transacções (desde que forneçamos o nosso número de contribuinte à loja), às quais podemos aceder através do Portal das Finanças, mas o Ministério da Saúde não tem maneira de saber quais hospitais têm falta de camas, médicos, enfermeiros e como re-alocar os doentes e os recursos dentro do sistema?

Eu tive uma cadeira de Investigação Operacional na FEUC em 1994, na qual nos ensinaram a resolver problemas deste género. Já tivemos Primeiro-Ministros licenciados em engenharia e economia, logo julgo ter havido--e haver--competência técnica para pensar na gestão da saúde em termos de alocações eficientes dos recursos. E, com a moda do "big data", suspeito que, entre tanto desempregado português, deve haver uns poucos que são craques em SQL para gerir os dados e/ou GAMS para encontrar a solução óptima deste problema.

Apesar de tudo, folgo em saber que o Ministério da Saúde está aberto a soluções de cooperação entre o sector público e o sector privado.

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

O preço do petróleo

Hoje, a Delta Airlines anunciou resultados trimestrais que surpreenderam o mercado pela positiva. Mas este ano não vai ser tão bom como poderia ser. A perspectiva que a Delta Airlines tinha era uma de subida de preços de energia e, como tal, as suas estratégias de hedging eram baseadas em posições longas. Como os preços de petróleo desceram, a companhia acabou com contractos que a comprometem a pagar um preço significativamente mais alto do que o preço spot. Presume-se que os custos desta estratégia ascenderão a mais de US$1,3 mil milhões. Ao ouvir a notícia, fiquei curiosa acerca da estratégia de hedging usada pela TAP. Se houver um jornalista curioso, este tópico seria bastante interessante.

Ao contrário do que as pessoas pensam, o aumento de produção de petróleo não aconteceu de um dia para o outro. O investimento na tecnologia de extracção de energia de xisto começou a ser apoiada pela administração Bush (pai). Já há cerca de ano e meio, era visível que os EUA estavam posicionados para ter petróleo barato, pois o petróleo era tanto que o aumento do transporte ferroviário aumentou 400%, e até havia dificuldade em encontrar sítios para armazenar tanto produto. Quem prestasse atenção aos relatórios da Energy Information Administration veria que as expectativas que o mercado tinha estavam a divergir da informação fundamental do mercado, logo era inevitável uma eventual correcção nos preços.

Mas não foi só o lado da oferta que depreciou os preços. Durante a recessão, houve várias mudanças no comportamento dos consumidores americanos: o tamanho dos carros diminuiu e a eficiência energética aumentou, há menos jovens a comprar carro, a distância de comuta para o trabalho encurtou, e os consumidores estão hoje em dia mais atentos aos seus gastos com gasolina e gasóleo. Isto também era visível há mais de ano e meio.

A única surpresa que se verifica agora é o comportamento da Arábia Saudita. Tradicionalmente, a OPEC reage a uma descida de preços com uma diminuição da produção, mas como quase todos membros não são muito disciplinados, acabam por não cumprir o que prometem. A Arábia Saudita é o membro que faz o ajustamento e reduz a produção, absorvendo assim o choque e suportando os custos da estratégia. Desta vez, os Saudis surpreenderam o mercado por não cortarem a sua produção. O objectivo é mesmo levar a que alguns produtores de petróleo nos EUA vão à falência. Este ajustamento ainda está em curso.

Sabemos que, a curto prazo, os produtores americanos poderão suportar algumas perdas; mas, no longo prazo, os custos fixos terão de ser cobertos para que as empresas continuem em operação. Por outro lado, o que diferencia a tecnologia de extracção em xisto é o facto de ser muito barato mudar de local. Isto implica que quem tem acesso a mais terra, pode procurar os sítios onde os custos de extracção sejam mais baratos. Já a tecnologia tradicional de usar poços de petróleo não tem tanta mobilidade. Ou seja, é natural que o mix de tecnologia mude: haja mais produtores que usam poços a ir à falência do que produtores que usam fracturação hidráulica.

Também devemos ter em atenção os custos ambientais. A extracção em xisto é intensiva no uso de água, causa tremores de terra, e poluição. Ainda não é claro quais os custos totais da tecnologia para o ambiente e para a saúde pública, mas o estado de Nova Iorque já anunciou que vai banir o fracturação hidráulica.

Entretanto, os americanos já semearam as sementes para a seguinte revolução energética. Durante a recessão, investiram fortemente em energias alternativas. Daqui a cerca de 20 anos, os EUA estarão mais uma vez posicionados para colher esses frutos.

A arte de enfraquecer

"The fault, dear Brutus, is not in our stars

But in ourselves, that we are underlings."

--William Shakespeare, "Julius Caesar"

A análise SWOT (Strengths, Weaknesses, Opportunities, Threats) é um conceito que foi criado na área de gestão de organizações. Uma das ideias centrais é a de conversão, isto é, após a identificação das fraquezas ou das ameaças, estas são convertidas em forças ou oportunidades. Portugal tem a notável distinção de conseguir pegar em fraquezas e convertê-las não em forças ou oportunidades, mas em fraquezas ainda maiores.

Apesar de ter sido desenvolvida para empresas e projectos, a análise SWOT é uma ideia muito versátil, que pode ser usada para analisar países e até tem utilidade a nível de desenvolvimento pessoal. Por exemplo, a administração Bush (pai) identificou a dependência energética dos EUA como uma fraqueza e investiu em coisas como o desenvolvimento de novas tecnologias para extrair petróleo. Hoje, os EUA colhem os frutos desse investimento através da produção de petróleo e de gás natural de xisto. Outro exemplo, Carl Sagan costumava dizer que a razão de ele ter tanta facilidade em comunicar com pessoas sem formação científica advinha do facto de ele ter de passar muito mais tempo a estudar e a racionalizar a informação que ele recebia porque, para ele, as coisas não eram tão fáceis de assimilar como para os outros. Em ambos estes casos, uma fraqueza foi convertida numa força.

Em 1994, Michael Porter analisou a economia portuguesa e definiu quais as suas forças, isto é, os clusters onde Portugal se deveria focar e aprofundar--isto foi o chamado Relatório Porter. As conclusões foram muito controversas porque, na altura, desejava-se que Portugal fosse uma país desenvolvido o mais rapidamente possível e isso implicava que o sector terciário (serviços) teria de crescer muito mais rapidamente do que os sectores primário (agricultura) e secundário (indústria), pois era essa a característica dos países desenvolvidos. O Relatório Porter apresentava um grande problema: mandava o país investir na agricultura e na indústria, áreas onde estavam os clusters de competitividade portugueses que precisavam de ser aprofundados.

[Um à parte: Note-se que Michael Porter é americano e os americanos adoram a agricultura. O lóbi da agricultura é um dos mais fortes nos EUA, e os americanos não vêem uma agricultura forte como sendo uma coisa negativa. As "land-grant universities", formadas em 1862 e 1890 com os Morrill Acts, têm uma forte componente agrícola e têm, ainda hoje, uma área de Extension Service, ou seja, parte do papel destas universidades é "estender-se" para a sociedade e colaborar com governos locais, agricultores, etc., para transferir para a sociedade os resultados da investigação levada a cabo pelo ramo de Investigação (dura) da universidade. Por sua vez o ramo de Investigação usa dados e informação colhidos pelo ramo de Extensão. Para um americano como Michael Porter, investir na agricultura não é vergonha.]

O Relatório Porter foi ignorado, Portugal optou por investir fortemente na área de serviços. Melhorou-se o acesso à educação, a saúde, turismo, infraestruturas, complicou-se a burocracia--os burocratas são empregados do sector terciário,--etc. Parece-me a mim, que, em Portugal, se confundiu as causas com as consequências do desenvolvimento: os outros países não desinvestiram no sector primário para se desenvolver; o que aconteceu foi que esse sector ficou com uma produtividade tão alta que libertou recursos para a expansão dos sectores secundário e terciário. É assim que países como a França e os EUA têm excesso de produção agrícola. Por exemplo, nos EUA, a região do Delta do Arkansas (parte leste do estado do Arkansas, ao longo do Rio Mississippi) produz arroz suficiente para todo o consumo de arroz americano e note-se que nesta zona produz-se principalmente arroz agulha (70% do arroz produzido nos EUA é agulha). Esta zona é uma das mais produtivas do mundo. A Califórnia especializa-se na produção de arroz de grão médio. Os EUA exportam 50% do arroz que produzem (sumário sobre o cultivo de arroz nos EUA aqui). Outro exemplo, o desenvolvimento do Brasil tem sido conseguido através de investimento na agricultura, nomeadamente na produção de milho e soja. A França também protege a sua agricultura, assim como a Suiça.

Também é verdade que o nosso desinvestimento na agricultura e pescas foi negociado durante a adesão à CEE, mas nós poderíamos ter aproveitado as conclusões do Relatório Porter para renegociar a nossa estadia na CEE. Em 2002, quando Michael Porter visitou Portugal e disse que o país estava no mau caminho, também podíamos ter aproveitado para repensar o que andávamos a fazer. Não só não repensámos, como ainda fizemos escolhas que nos prejudicaram ainda mais. Em 2011, quando negociámos com a Troika também podíamos ter reavaliado o papel da agricultura e das pescas no nosso desenvolvimento, mas escolhemos não o fazer novamente. Em 2013, 19 anos após o Relatório Porter, há quem defenda que precisamos de um Relatório Porter novo.

O que nós precisamos é de ter vergonha na cara. Andar ad eternum a fazer estudos e relatórios, sem ter intenção de implementar as conclusões do relatório, só gasta dinheiro, não cria valor nenhum. É incompreensível não saber álgebra; é uma coisa que se aprende na escola primária. Pagar 100 para ter um proveito de 10, resulta numa perda de 90. Até agora, o que nós fizemos foi aumentar custos e destruir ou internacionalizar proveitos.

Vejamos alguns exemplos:

  • Pedimos emprestado para investir em infraestrutura e, segundo os rankings de competitividade, temos uma das melhores do mundo. Ao construir a infraestrutura, aumentámos os nossos compromissos financeiros futuros, pois são necessários custos de manutenção e pagamento de juros e da dívida contraída para a construção. Ainda por cima, tivemos a brilhante ideia de garantir rentabilidade a certas PPPs, independentemente do uso que tem a infraestrutura, pois construímos sem qualquer noção de escala ou de benefício público--se calhar, somos fãs do Kevin Costner e da filosofia "if you build it, he will come". Mas ainda não chegou ninguém; pelo contrário, manda-se pessoas embora do país e, para adoçar o veneno com que nos matamos, limitamos o acesso à infraestrutura através de portagens, efectivamente destruindo grande parte dos proveitos que a existência dessa infraestrutura poderia ter.

    Também poderíamos falar da camada de stress a que submetemos os nossos cidadãos, alguns que até pagam as portagens e, mesmo assim, recebem cartas em casa a acusá-los de não pagamento e a exigir somas exorbitantes. Isto é terrorismo fiscal, meus amigos (Je suis Zé Povinho); diminui a produtividade e a moral do povo, e usa recursos públicos num país cujo estado está endividado até ao queixo, já nem se vê o pescoço.

    Ainda não satisfeitos, continuamos com a mesma lenga-lenga: enganámo-nos, afinal não devíamos ter construído esta autoestrada aqui, devia ter sido no outro lado, precisamos de mais. Pergunte-se aos demagogos: porque é que os EUA e a Alemanha crescem com uma infraestrutura envelhecida e inadequada e Portugal não cresce com uma infraestrutura muito mais recente?

  • Destruímos os poucos clusters de competitividade que tínhamos. Sem produção de produtos físicos, de que nos vale infraestrutura? O que acontece, a nível nacional, é que o custo fixo da infraestrutura é dividido por uma quantidade mais pequena de produto, o que aumenta o custo médio de produção para o país.
  • Investimos fortemente na educação dos jovens, e depois convidámo-los a emigrar. Esta ideia é completamente suicida! É tão suicida que, três anos depois, andamos às aranhas porque a taxa da natalidade foi para as urtigas e os nossos governantes só pensam em promover a natalidade. Para quê? Será que precisamos de mais emigrantes daqui a 20-24 anos? Aliás, repararam que, para 2060, desapareceram mais de um milhão de portugueses entre as projecções de 2009 e 2014?

    Efectivamente, se compararmos as projecções médias da população portuguesa no relatório saído em Março de 2009 com as do relatório saído em Março de 2014, concluímos que a população portuguesa em 2060 está projectada para descer de 10 milhões para 8,6 milhões de almas. E note-se que os números foram calculados antes dos nossos governantes mandarem os jovens embora para "resolver os problemas deles e dos outros".

    Então e a álgebra onde fica? É que custou, e custa, aos contribuintes portugueses manter estes jovens saudáveis, dar-lhes uma educação, etc., e, agora que eles estão prestes a começar a contribuir para a sociedade, nós internacionalizamos os proveitos, damo-los de mão beijada à Alemanha, aos EUA, ao Reino Unido, etc. É que nem temos a presença de espírito de começar um programa para acompanhar estes jovens fora de Portugal, para que eles continuem a manter ligações com a sua pátria, e quem sabe um dia regressavam e dinamizavam o país. Podiam convidar estas pessoas a investir em dívida pública portuguesa, ou começavam um programa em que os jovens contribuíam uma certa quantia por mês e depois, quando se reformassem, tinham acesso aos serviços de saúde em Portugal (um programa assim poderia ser desenvolvido de forma a que qualquer estrangeiro pudesse participar). Ao perder dois milhões de pessoas em 45 anos, nós vamos ter de reduzir a infraestrutura física e laboral dos serviços de saúde (será que vale a pena construir mais hospitais?) ou encontrar mais pessoas para vir viver para Portugal. Isto tem de começar a ser planeado agora. Os portugueses têm de ser informados das escolhas que o país enfrenta. Não é depois da casa arrombada que se metem as trancas à porta; se bem que até agora, esse tenha sido o modus operandi que nos tem regido.

Há tanta coisa original que poderia ser feita e explorada, para nos dar dinheiro a curto prazo e nos dar tempo para alinhar os incentivos da economia para que sobreviva no longo prazo. Talvez fosse isso o que Agostinho da Silva nos tentava dizer, quando dizia que Portugal tem, em si, o engenho para mostrar ao mundo novas formas de resolver os problemas e de reinventar o mundo. Mas note-se que seria de muito mau tom pedir às pessoas para investir em Portugal quando o país continua a ser sugado pelos mesmos do costume e nem sequer há um enquadramento legal para combater a corrupção. Basta pensar que, no caso dos submarinos, foi provada corrupção na Alemanha e não em Portugal.

É que Shakespeare tinha razão: a culpa não é das estrelas, ela reside em nós.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Um novo Correia de Campos?

Sétima pessoa a morrer nas urgências em apenas um mês. Isto é extraordinário. Nos anos anteriores, ninguém morria nas urgências. O que também era extraordinário. Isto é tudo tão extraordinário que nem sei o que é mais extraordinário.

Faz lembrar os últimos tempos de Correia de Campos como Ministro da Saúde. Se bem me lembro, de um momento para o outro, as mulheres começaram a parir em barda nas ambulâncias. Penso que até houve um bebé que nasceu num helicóptero a caminho de uma maternidade. O mais fantástico deste fenómeno foi que mal o ministro caiu as mulheres deixaram de ter filhos nas ambulâncias. Uma explicação possível é a queda de natalidade.

Adenda: Um dia depois desta entrada, foi notícia de abertura no Jornal da Tarde da SIC o caso de um idoso de 96 anos que morreu nas urgências. De acordo com um comentário do "Tiro ao Alvo" sabe-se agora que "o falecido foi atendido 9 minutos depois de chegar ao hospital e que padecia, como é compreensível, de várias doenças crónicas."

O papel decisivo da aparência

Quando entraram no cenário histórico, os trabalhadores sentiram a necessidade de adoptar um traje próprio, o sans-cullote, nome pelo qual ficaram conhecidos na Revolução Francesa.

A difícil perda do absoluto

Durante um século, os economistas clássicos andaram a discutir a origem do valor das coisas. Com os chamados marginalistas, no último quartel do século XIX, concluiu-se finalmente que o valor não está nas coisas, mas sim nas pessoas. Hoje, pode parecer estranho que se tenha demorado tanto tempo a chegar a essa conclusão. Mas, de facto, não foi fácil aceitar a não existência de uma fonte objectiva para o valor, como o trabalho, o lucro, a terra. A perda da valia intrínseca – o facto de que tudo deixa de possuir valor objectivo, independente da avaliação mutável da oferta e da procura – e a relatividade universal – o facto de que uma coisa só existe em relação a outras – são inerentes ao próprio conceito de valor. Talvez esta relatividade ou relativismo tenha provocado uma grande inquietação e lamentação naqueles primeiros génios da ciência económica. Talvez lhes fosse difícil suportar a perda de medidas e padrões absolutos, de deixar de medir através de réguas, normas e padrões.

sábado, 17 de janeiro de 2015

Baixa na Destreza

Infelizmente, por motivos profissionais, a Vera Gouveia de Barros tem de abandonar este blogue.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Mais coisas cuja lógica me escapa...

O hipermercado onde faço compras regularmente é o Target. Gosto bastante de lá ir, pois aprecio a dedicação ao design da companhia; mas, ultimamente, as coisas têm andado mal.

Em Maio do ano passado, houve uma fuga de dados dos clientes, que teve uma publicidade tão má, que muitas pessoas deixaram de lá fazer compras. Hoje, vi uma notícia na Yahoo Finance que dizia que o Target, depois de acumular grandes perdas na sua operação no Canadá, decidiu que vai retirar-se desse país. O Target abriu lojas no Canadá há dois anos, julgo ser razoável presumir que a estratégia dessa expansão levou vários anos a planear.

Após o escândalo da fuga de dados, o CEO demitiu-se voluntariamente com um pacote de compensação avaliado em mais de US$47 milhões--na minha próxima vida, também quero demitir-me assim. Exactamente, o que é que andam a fazer os membros do Board of Directors desta companhia? O pior é que não é a única com estas aberrações de gestão, liderança, e supervisão, como os portugueses tão bem já sabem.

E notem uma coisa, há muitas companhias que têm despesas com vários CEOs. Eu sei de um caso em que a companhia paga compensações a quatro CEOs: o actual e três antigos. Um deles até tem uma cláusula no contracto de compensação que estipula que ele tem direito a receber a sua compensação anual até 10 anos depois de estar morto. Numa empresa cotada na bolsa, acho estes contractos extremamente lesivos para os accionistas.

Será que podemos parar de idolatrar CEOs? É que a maior parte deles não vale nem um décimo da sua compensação.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Charlie Hebdo - porquê insistir na representação do Profeta, que se sabe ofender os muçulmanos? Não estou de acordo. Não em meu nome. — Ana Gomes

Houve uma publicação ortodoxa em Israel que, na reportagem que fez sobre as manifestações de Paris, apagou as mulheres da fotografia. A justificação é simples: 
A publicação hassídica ― movimento dentro do judaísmo ortodoxo ― considera indecente a representação de mulheres.
Parafraseando Ana Gomes: porquê insistir na representação de mulheres, que se sabe ofender uns outros palermas quaisquer?

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Uma ousadia

Maquiavel teve a ousadia de numa famosa passagem ensinar os homens «a não serem bons» - escusado será dizer que Maquiavel não disse nem pretendia dizer que se deve ensinar os homens a serem maus. Num mundo ideal, onde todos os homens fossem virtuosos, não existiria a necessidade de por vezes não podermos ser bons. Desgraçadamente, esse mundo não existe, e Maquiavel achava que devemos encarar e viver o mundo tal como ele é e não como gostaríamos que fosse.

Maquiavel viu com respeito, mas com apreensão ainda maior, o reflorescimento religioso do seu tempo. As novas ordens, a fim de evitar a destruição da religião, lutavam contra a «licenciosidade dos prelados e dos chefes da igreja». Todavia, ao ensinarem as pessoas a serem boas e não «a resistir ao mal» levavam a que «os governantes perversos podem fazer todo o mal que quiserem».

O escândalo da descoberta do poder de perdoar

O povo ficava mais escandalizado com a insistência de Jesus no poder de perdoar do que com os milagres que ele fazia, de modo que «os que comiam ali começaram a dizer entre si: Quem é este que até perdoa pecados?» (Lucas, 7: 49)

Cultura chiclete

Detesto a frase “ninguém é insubstituível”, como se as pessoas fossem descartáveis, tipo gillettes. A frase é estúpida e falsa. Por exemplo, hoje, muita gente queixa-se da falta de grandes líderes políticos, de líderes corajosos e visionários. Esquecem-se que esses líderes não nascem do nada. Como lembrava Filipe Ribeiro de Meneses, num artigo a propósito dos 50 anos da morte de Winston Churchill, a “experiência acumulada ao longo dos anos conta para muito na vida pública; erros iniciais podem e devem ser perdoados”. Líderes com a visão e a sabedoria de Churchill precisam de um longo processo de aprendizagem. Precisamente aquilo que esta cultura chiclete, do mastiga e deita fora, não permite.

Probabilidades

Como se diz na linguagem das ciências naturais, é «o infinitamente improvável que ocorre regularmente".

11 de Setembro, 11 de Março, 7 de Julho e 7 de Janeiro

Defendi a minha tese de mestrado em 18 de Dezembro de 2000. Na Faculdade de Economia da Universidade do Porto. A seguir à defesa, segui para o meu gabinete na Universidade do Minho. Tinha dezenas de candidaturas para preencher. Candidatei-me vários programas de doutoramento nos Estados Unidos. No dia 1 de Abril de 2001, envio um e-mail à Cornell, aceitando a proposta que me faziam. Meia dúzia de dias depois, recebo um e-mail da New York University. O sonho de viver em Nova Iorque estava ali. Tinha de escolher entre a Cornell e Nova Iorque. A escolha profissional mais difícil que alguma vez fiz. Não só ao nível académico, a Cornell excedeu as minhas expectativas.

Em 1 de Agosto, venho para os EUA. A Sandra veio comigo. Veio trazer-me à escola. Aterrámos em Boston. Fomos uns dias a Bristol, Rhode Island, visitar a família paterna. Também fomos uns dias a Nova Iorque. Ficámos no Mayfair Hotel. Na rua 49, ali com a Broadway ao lado. Nos dias em que ficámos, andámos. Muito. Pelo Central Park, pelos museus, pelas ruas. Pequenos-almoços sempre no Dunkin' Donuts. Nas Nações Unidas sentimos a solenidade do local. Na Broadway, vimos o "Cabaret" com a Brooke Shields.

Não subimos ao Empire State Building. As bichas eram enormes. A desforra seria nas torres gémeas. A caminho delas, parámos na NYU para sentir saudades do que tinha recusado. Chegados ao World Trade Center, enfrentámos a multidão. Queríamos subir. Subir até lá acima. À entrada para o elevador, descobrimos que tínhamos esgotado o rolo fotográfico. Voltámos para trás, comprámos um rolo, mas já não houve paciência para enfrentar de novo as intermináveis filas. Ficaria para uma próxima vez.

Voltámos a Bristol, onde encontrámos o meu irmão. O Artur vinha de férias com a minha recém-cunhada, Catarina. Tinham alugado um carro e trouxeram-nos a Ithaca. 

No primeiro dia, eu e a Sandra vagueámos pela Cornell. Passeámos, vimos o ambiente. Olhávamos para cada lunático com respeito. Algum cientista maluco, com certeza. Lembrei-me de, em pequeno, passear, com o meu tio Artur pelos campos da Brown University. Luisinho, é óptimo passear por aqui. Cada pessoa com que nos cruzamos é, muito provavelmente, mais inteligente do que nós!

No segundo dia, visitámos o departamento de Economia. Era no edifício mais feio de todo o Campus. Três dias antes de as aulas começarem, o Artur e Catarina voltaram a Ithaca. Vinham buscar a Sandra. Levaram-na com eles. No dia 25 de Agosto, levantou voo do aeroporto de Boston e voltou para Portugal. Eu fiquei.

No dia 11 de Setembro de 2001, acordo com o telefone. Já em Portugal, telefonou-me o Artur a dizer que ligasse a televisão. O segundo avião tinha acabado de embater na segunda torre. Não sabia o que fazer. Faltavam instruções. George Bush tinha desaparecido, na CNN faltavam informações, na Cornell continuavam as aulas. Sigo para a universidade. Nem todos sabiam do ataque.

A primeira aula foi de Microeconomia, com o prof. David Easley. Já se sabia que se tratava de um ataque terrorista. Começa a aula por dizer que ia haver aula. Não podíamos ceder aos terroristas. Mudar as nossas rotinas já seria uma cedência. Falou sobre a axiomática do consumidor. À saída da aula, já as Torres tinham caído. Havia mais informações. Era um ataque em larga escala que também envolvia a Casa Branca e o Pentágono. Tentavam atingir os três corações da América, o financeiro, o militar e o político.

Os aviões tinham partido do aeroporto de Boston.

Ao ver as imagens lembro-me do quão perto estive de estar ali. A NYU estava tão perto. Havia que descansar a família de Portugal. Eu estava no Estado de Nova Iorque, não na cidade. Os telefones não funcionavam. A minha mãe descansou a família do lado dela. Choveram também telefonemas para a minha sogra.

Em Portugal, queriam que eu voltasse, saísse de Nova Iorque, fizesse alguma coisa. Aqui, nos EUA, a única preocupação era não alterar a rotina. Esse o discurso oficial em nós entranhado. Os carros e as casas encheram-se de bandeirinhas patrióticas. As aulas na Cornell prosseguiram. Apenas foram interrompidas durante duas horas, na quinta-feira, 13 de Setembro. Entre o meio-dia e as duas houve uma cerimónia em honra do luto. Alguns discursos, muitas canções, muitos credos e raças. Um cordão emocional envolvia-nos.

A principal preocupação era evitar reacções racistas e xenófobas. A comunidade muçulmana não devia temer pela sua segurança. A polícia estava em alerta máximo. Qualquer ataque, físico ou moral, à comunidade muçulmana seria severamente reprimido. O país voltou a uma normalidade mais musculada.