terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Reportagem 100

Os sinos dobram, mas não por heróis regressados a casa.
 Nem porque chamem fiéis ao culto ou infantes ao baptismo. Os nubentes às bodas ou as carpideiras ao esquife. Porque se celebre a conversão dos perdidos, o arrependimento dos apóstatas, a pira onde se queimam as bruxas, vade retro. Não dobram porque haja fogo no bosque ou porque desçam dos montes lobos que devastam capoeiras. Porque se veja ao longe o inimigo. Os salteadores, os ladrões, os presos no pelourinho. Os exércitos. Nem pelas festas do estio. Nem pelo fim da jorna, ou seu início. Nem por miúdos que não querem ir à escola. Não dobram avisando que chegou o feirante ou o amolador de facas. Facas e tesouras e remendos em panelas. Não dobram porque se ergam circos e carrosséis. Porque se inaugure uma estátua, porque se aproxime um comboio, porque esteja cheio o hospital. Não é o cobrador de impostos que os move. Não os faz tocar quem traz cartas e pacotes, convites e facturas. Um avião que voe baixo, um balão em chamas. Os pássaros que tornam a casa em bandos, ou que vêm dela, todas as paragens onde haja sol e ninhos são a casa dos pássaros que migram. Não dobram os sinos porque seja verão, porque acabe o inverno, porque entre o outono, porque comece a primavera. O verão que queima, o inverno que enregela, o outono que conforta, a primavera que arrebata. Porque haja secas, porque se lhes sigam enxurradas. Não dobram os sinos porque se reúna enfim uma família. Porque se chegue ao fim de uma aventura, ou de uma batalha, ou de uma viagem. Não dobram os sinos pelo diploma do filho. Porque se adivinhe o futuro, porque se entenda o passado, porque o presente passe, carpe diem. Por fantasmas e visões. Não dobram os sinos para que todos acorram à praça a ouvir quem recita, quem anuncia o fim do mundo, quem promete a salvação. Os sinos não dobram por espectáculos e orquestras. Os sinos não dobram por ondas do mar, por ventos, por pântanos, porque chegou a altura de mergulhar no rio. Porque o céu se encha de nuvens carregadas. Não sei por quem os sinos dobram. Não perguntes por quem os sinos dobram. Dobram por ti.

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