quarta-feira, 5 de julho de 2017

Rotherhithe

No sudeste londrino, há um pedaço de terra que, por causa do estranho serpentear do tamisa, e por falta de meio de passagem entre margens, está afortunadamente isolado da cidade. Até ao início dos anos 90, esta zona era quase exclusivamente ocupada por docas, que acolhiam os barcos que vinham da América, sobretudo do Canadá. As docas entretanto fecharam e deram lugar a bosques e lagos, invulgarmente descuidados para os padrões ingleses, em torno dos quais se construíram casas de dois andares com telhados angulados, que fazem mais lembrar a Suécia do que Inglaterra. De cabeça, acho que o bairro tem apenas duas mercearias, três restaurantes, um centro de saúde e dois pubs. Esta descrição não parecerá anormal a quem nunca viveu em Londres - mas é absurda para quem cá viva. Nos últimos anos, Londres tornou-se sobre-povoada, sobre-construída, sobre-poluída. Este pedaço manteve-se estranhamente desabitado, desconstruído, límpido. 

Um dos pubs do bairro é o mais bonito da cidade, e viu partir, há uns quatrocentos anos, rumo à Virgínia, o Mayflower - parece que todas as viagens a partir do bairro são feitas para longe. O outro pub fica na ponta da península que é desenhada pelo rio, e tem uma esplanada na qual é possível tomar, calmamente, refeições razoáveis com vista privilegiada para a zona financeira da cidade - ali tão perto e tão confortavelmente distante. Foi lá que jantei há umas duas ou três semanas, com amigos do tempo em que ali vivi. Um dos amigos é engenheiro civil, trabalha na maior empresa de construção do Reino Unido e trouxe dois colegas de trabalho com ele. Um destes colegas, acho que a chegar aos 60s, estava a contar-nos dos planos para explorar a Austrália. Ia lá passar nove meses, sozinho, e fazia particular questão de explorar o interior deserto. Perguntei se tinha tirado uma sabática. Não, tinha sido despedido - uns dias antes. Com ele, foram despedidos um terço dos trabalhadores da construtora. Também me contaram que decidiram parar por completo de investir nas zonas 1 e 2 de Londres, e que só iam acabar de fazer os prédios já planeados para os subúrbios da cidade. A seguir a disso, a ideia era guardar os tarecos. 

Diz-se que o melhor barómetro para a economia inglesa é dado pelo número de guindastes no centro da cidade. Para quem ache que dados científicos deste calibre não bastam: a economia britânica cresceu 0,2% no primeiro trimestre do ano, e esta taxa é a mais baixa de entre as economias avançadas. A inflação está quase nos 3%, por causa da queda no valor da libra. A produtividade caiu, a indústria também, há menos trabalhadores não qualificados a querer vir para cá, contrataram-se menos trabalhadores qualificados. Há 96% menos enfermeiros a candidatar-se para o sistema de saúde britânico. O preço dos transportes públicos sobe significativamente face ao aumento dos salários - sendo que, para referência, um passe apenas para o centro da cidade custa já cerca de 150 euros por mês. 

Eu disse, há mais de um ano, antes do referendo, que a saída do Reino Unido da União Europeia não tinha qualquer argumento económico, e que seria uma tragédia a este nível. Seria - se acontecesse. Estou ainda muito longe de estar convencido que vai acontecer. Acho que a realidade está a dar-me razão. Sem que daí retire gozo. Até porque já não vivo naquele bairro, tão estrategicamente isolado da cidade. 

2 comentários:

  1. "Nos últimos anos, Londres tornou-se sobre-povoada, sobre-construída, sobre-poluída."

    Eu, que já não ia lá há anos, achei isso mesmo. E perguntei-me se não haveria um ponto a partir do qual o pêndulo volta para trás e uma metrópole passa a expelir pessoas em vez de as atrair.

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    1. Isabel, julgo que já chegou a esse ponto. Os preços da habitação estão a um nível onde alguém que ganhe um salário médio (repito, médio) não tem hipótese de viver sozinho, tem de partilhar um apartamento com mais 3 ou 4 pessoas. Conheço várias pessoas que abandonaram a cidade e outras que tem isso como objetivo próximo. O efeito para os que ficam é imediato também: sobem os preços dos serviços básicos, tornando a cidade ainda mais cara. A total descorrelação entre preços de habitação e rendimentos obtidos na cidade (a discussão do que nos trouxe aqui merecia aliás um post ou uma série de posts) vai em última análise expulsar as pessoas da cidade e frustrar a especulação que a causou.

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